Economia
JBS e a crise que já deixa mais de 4 mil funcionários com Covid-19
Surtos atingiram pelo menos 23 fábricas da empresa em sete Estados, ajudando na propagação da doença pelo país.
A JBS se comprometeu a manter a população alimentada durante a pandemia do novo coronavírus, o que buscou cumprir com a contração demais de 15 mil colaboradores no Brasil este ano para produzir cortes de frango, suínos e bovinos, sendo uma parte relevante para exportação. A maior produtora de proteína animal do mundo teve lucro líquido de3,4 bilhões de reais no segundo trimestre, quase o dobro do esperado pelos especialistas.
O resultado de um caixa gordo foram mais de 4 mil funcionários da empresa no Brasil testando positivo para a doença, além de pelo menos seis mortes por Covid-19, segundo informações divulgadas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e por autoridades locais de saúde pública.
As autoridades de saúde, integrantes do MPT e sindicatos, apontam que cerca de 23 fábricas da JBS presentes em sete Estados foram atingidas pelos surtos, ajudando na disseminação do novo coronavírus por todo o país.
Sediada em São Paulo, a empresa diz que não possui qualquer tipo de irregularidade, e afirma que proteger a saúde de seus trabalhadores está entre as “prioridades máximas”. Questionada sobre surtos da Covid-19 em suas instalações, a empresa diz que compartilha os dados com as autoridades competentes, e se nega a dar mais detalhes sobre infecções e mortes entre seus funcionários.
O Brasil responde pelo terceiro pior surto da doença no mundo, ficando atrás apenas de Estados Unidos e Índia. São mais de 4,1 milhões de casos confirmados e quase 127.000 mortes. E é neste cenário que fábricas da JBS se tornaram foco de disseminação da doença, mostram dados de autoridades de saúde e dados do MPT.
Em março, a empresa suspendeu sia produção em uma unidade de carne bovina da Pensilvânia depois que alguns colaboradores apresentaram sintomas semelhantes aos da gripe. Esse foi o primeiro contato da companhia com o vírus, que foi seguido do fechamento temporário de duas instalações devido a grandes surtos, no Colorado e em Minnesota.
No Brasil, a JBS se tornou um ímã para processos judiciais. Desde abril, o MPT entrou com ao menos 18 ações civis públicas em varas trabalhistas de seis Estados, visando forçar a empresa a implementar protocolos mais rígidos de proteção a trabalhadores. Os contenciosos dizem respeito a pelo menos 17 fábricas da companhia onde ocorreram surtos de coronavírus.
Normalmente frias e com baixa circulação de ar, outras empresas do setor também lutam contra o vírus nas áreas de produção.Entretanto, a Marfrig e a BRF fizeram acordos com o MPT para testar rotineiramente os seus trabalhadores, solução encontrada para tentar minimizar o contágio e continuar operando com mais segurança.
Mas a JBS tem negado os pedidos do MPT para realizar esses testes em massa, que não são expressamente exigidos pela legislação brasileira. Em nota, a empresa falo sobre a legalidade. “Não há, por parte do poder público, órgãos regulatórios ou de saúde, qualquer determinação que trate da necessidade ou obrigatoriedade da realização de testes pelo setor frigorífico e, portanto, que deva ser adotado pela companhia”.
De acordo com o MPT e auditores do trabalho vinculados ao Ministério da Economia, o que foi observado após a inspeção em ao menos duas fábricas da JBS levantou preocupações. Após diligências recentes, as autoridades afirmaram que o vírus se espalhou entre empregados da JBS porque a empresa não testou sua força de trabalho, não forneceu aos funcionários máscaras em número suficiente, e não isolou rapidamente os trabalhadores com teste positivo ou com sintomas de Covid-19.
Desde o início da pandemia, o MPT quer que a empresa faça os testes e endureça os protocolos de quarentena para casos suspeitos, além de pleitear o fornecimento de equipamentos de proteção individual adequados e maior espaçamento entre os trabalhadores nas linhas de produção. Na maioria das ações civis públicas contra a JBS, o MPT também pede o pagamento de danos morais coletivos entre 3 milhões de reais e 20 milhões de reais. O dinheiro seria usado para custear projetos sociais ou outros, preferencialmente na área da saúde, para o auxílio às instituições no combate à Covid-19.
“A JBS é a líder do segmento dela no mundo e a gente espera de um líder exemplo. Ela não quer testar e assumir a sua responsabilidade”, disse Heiler Natali, procurador do MPT no Paraná.
O resultado das disputas judiciais envolvendo a empresa foram a paralisação temporária de seis fábricas da JBS no Brasil neste ano, mostra o MPT. Por outro lado, a JBS afirma que somente cinco de suas unidades foram afetadas pelas paralisações, e que a outra citada pelo MPT nunca foi fechada.
A fábrica em questão fica na cidade de Três Passos, no Rio Grande do Sul, e cortes de suínos. Em 22 de junho, um juiz do trabalho determinou que a fábrica afastasse, com remuneração e por 14 dias, todos os funcionários que tiveram resultado positivo para Covid-19, além de ordenar o teste dos remanescentes. Cerca de 40% das pessoas naquela instalação, em que trabalham 1.017 pessoas, testaram positivo para coronavírus. Um colaborador morreu, de acordo com o MPT.
A empresa não comenta os processos e defende as medidas que vem tomando, apontando que contratou consultores de renome para assessorá-la em protocolos de saúde, inclusive com respeito ao distanciamento físico entre as pessoas nas fábricas. Em julho, a JBS providenciou testes em massa para trabalhadores em uma unidade de suínos na cidade de Dourados, no Mato Grosso do Sul, por meio de um acordo fechado com o MPT daquele Estado.
O CEO Gilberto Tomazoni disse na segunda semana de agosto que sentia “muito orgulho” da resposta da JBS à pandemia, informando que a empresa investiu 400 milhões de dólares para proteger os trabalhadores e as comunidades ao redor de suas fábricas.
A JBS possui 135 unidades no Brasil, onde produz carne bovina, de frango, suína e couros, e também mantém escritórios e centros de distribuição. Essas operações representam cerca de um quinto da sua receita global. A JBS emprega 240 mil pessoas em todo o mundo, incluindo 135 mil no Brasil.
Proximidade perigosa
O total de infectados pelo coronavírus em frigoríficos é desconhecido no Brasil, já que o Ministério da Saúde não levanta o número de contaminações por setor. Porém, a Contac-CUT estima que até 25% dos cerca de 500 mil empregados do setor poderiam ter sido infectados. A Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), que representa as empresas de suínos e aves, contrapõe dizendo que a estimativa não possui “bases técnicas” e pode ser considerada “desinformação”.
Nessa toada, o MPT acredita que a JBS está atrás de seus rivais no que se refere a controlar a contaminação pelo novo coronavírus entre os seus colaboradores. Nos últimos meses, competidores diretos como a Marfrig e a BRF assinaram “Termos de Ajuste de Conduta” com o MPT, o que lhes permitiu continuar produzindo dentro da nova realidade da pandemia.
O MPT diz ter negociado TACs com 30 empresas, cobrindo um total de 98 unidades que empregam 185 mil pessoas no Brasil. Os TACs obrigam as companhias a aplicar e custear testes rotineiramente. A ideia é detectar a doença de maneira rápida e impedir sua propagação no ambiente de trabalho do frigorífico.
Em 1º de junho, a Marfrig começou a testar todos os seus 18 mil funcionários, ao passo que a BRF, que emprega cerca de 90 mil pessoas no Brasil e é a maior exportadora de frango do país, afirmou ter realizado 11 mil testes somente em sua fábrica de Toledo, no Paraná.
Enquanto a JBS rechaça os TACs e opta por defender sua posição nos tribunais, o MPT alega que usa os meios possíveis para tentar forçar uma mudança de postura, mesmo que isto signifique obrigar a JBS a fechar unidades para se readequar. Priscila Schvarcz, do MPT no Rio Grande do Sul, toca uma ação civil pública contra a empresa relacionada à unidade de Passo Fundo, que foi fechada por quase um mês, a partir de 24 de abril, depois que alguns trabalhadores adoeceram com Covid-19. No local, ao menos 305 empregados testaram positivo para coronavírus após dois surtos lá, disse ela.
“As medidas de paralisação de atividades são excepcionais, mas muitas vezes a única alternativa viável para a preservação da saúde dos trabalhadores e contenção do crescimento exponencial de casos nos estabelecimentos”, afirmou Schvarcz.
À Reuter, a JBS disse que prefere não assinar um TAC com o MPT porque cumpre todas as normas estabelecidas pelo governo federal para operar na pandemia. A empresa também garantiu que vai continuar defendendo seus “robustos” protocolos de saúde na Justiça.
Algum sucesso pode ser observado já que, em 3 de julho, uma desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho ordenou a reabertura de unidade em Passo Fundo, sob a justificativa de que se ficasse fechada seria “rompida toda a cadeia produtiva, com prejuízo inequívoco não só dos empregos… como da arrecadação de impostos, afora, desabastecer a população em geral”.
Mas para os funcionários a dinâmica é bem diferente.
Trabalhadores da JBS disseram à Reuters que temiam ser infectados, mas não podiam deixar de trabalhar porque precisavam do salário. Duas pessoas em Santa Catarina (uma em Ipumirim e outra em Nova Veneza) afirmaram em julho que a empresa fornecia a elas e a seus colegas apenas uma máscara facial descartável pedindo aos empregados que as usassem por cinco dias.
Segundo o MPT e um advogado que representa trabalhadores da fábrica sul-matogrossense, a mesma situação foi observada em Dourados e Passo Fundo.
“Meu colega pegou o vírus”, informou um funcionário de Ipumirim. “Nós realmente trabalhamos ombro a ombro e a empresa se recusou a nos testar”, acrescentou.
A JBS também não quis comentar sobre as máscaras, nem tampouco sobre a questão da proximidade dos trabalhadores nas linhas de produção.
Falsos compromissos
Nos últimos anos, a JBS enfrentou escândalos de corrupção e segurança alimentar, este último por causa da Operação Carne Fraca. Os eventos fizeram com que o preço de suas ações despencassem, além de levarem a multas pesadas, e atrasarem uma cobiçada listagem de ações dos Estados Unidos.
Contudo, a a demanda global por proteína animal levou a JBS a registrar lucros recordes no ano passado. Quando o vírus surgiu no início de 2020, o incentivo era alto para manter funcionando suas fábricas no Brasil. Primeiro porque as paralisações em suas unidades nos Estados Unidos levaram a cortes de produção nesse mercado-chave. Depois porque a moeda brasileira perdeu valor, tornando a carne produzida no Brasil mais barata para os compradores estrangeiros.
A JBS vende em 190 países e suas exportações de carne bovina para a China, por exemplo, subiram 53% em dólares no segundo trimestre.
Em uma teleconferência em março, o principal executivo da JBS prometeu que seguiria produzindo alimentos, mas disse que cuidar da saúde dos colaboradores seria prioridade. Ele anunciou medidas para as unidades da JBS, incluindo afastamento remunerado de funcionários em grupos de risco, desinfecção das instalações industriais, e aumento do espaçamento nos ônibus da empresa que transportam os trabalhadores. Tomazoni disse que essas ações poderiam não ser implementadas em todos os países da mesma forma, devido às leis locais.
O executivo também garantiu que a JBS tomaria a temperatura dos colaboradores no Brasil, os vacinaria contra o H1N1 para aumentar sua imunidade, e aumentaria o espaçamento de empregados nas áreas comuns das fábricas.
Com base em autos dos processos a que responde, procuradores do MPT, sindicatos e empregados ouvidos pela Reuters, é possível dizer que JBS nem sempre cumpriu suas promessas no Brasil.
O “Termo de Interdição” relativo à unidade de frango de Ipumirim, em Santa Catarina, mostrou que a empresa permitiu que pelo menos uma pessoa com diagnóstico confirmado de Covid-19 seguisse trabalhando no local. O termo é assinado por três auditores fiscais vinculados à pasta da Economia, e foi lavrado em 18 de maio. Conforme relatado por eles, a JBS também manteve ao menos 42 funcionários com doenças crônicas como hipertensão atuando. Posteriormente, sete delas testaram positivo para Covid-19.
Mais 86 casos confirmados de Covid-19 foram encontradas pelos auditores em Ipumirim depois de revisar os registros médicos dos empregados, representando 6% da força de trabalho ali. A JBS não quis comentar as conclusões dos auditores.
Em outra região do país, uma funcionária do setor de desossa da JBS em Colíder, em Mato Grosso, tornou-se o primeiro caso de Covid-19 confirmado naquele município em maio, segundo informações de autoridades locais de saúde citadas por procuradores numa ação civil pública movida contra a empresa pelo MPT matogrossense. Dos 602 funcionários da planta, 84 tiveram teste positivo para coronavírus até 17 de junho, uma taxa de infecção quase 12 vezes maior do que a da própria cidade, alegaram os procuradores. A JBS negou irregularidades em Colíder. A empresa disse que seguiu as regras federais para operar durante a pandemia, bem como os conselhos de especialistas para lidar com eventuais surtos.
Ainda assim, em uma unidade de carne bovina na cidade de Araputanga, também em Mato Grosso, os procuradores alegaram “absoluto descontrole epidemiológico”. Eles se referiam a 51 casos confirmados de Covid-19 entre 1.070 empregados ali, conforme os autos da ação civil pública que corre no Estado desde 4 de agosto relativa a esta planta. A JBS refutou o dado de infecções de Araputanga, mas não forneceu mais detalhes.
Surtos afetam comunidades inteiras
Algumas unidades da JBS respondem por surtos que afetaram comunidades inteiras, como em São Miguel do Guaporé, uma pequena cidade no Estado de Rondônia, onde 266 trabalhadores da empresa haviam sido infectados até 6 de junho, representando mais de 60% dos casos da cidade, diz o MPT na região.
Baseado nisso, o órgão conseguiu uma ordem judicial em 26 de maio para fechar temporariamente as instalações e conter o contágio. O juiz trabalhista Wadler Ferreira afirmou em sua decisão que a unidade da JBS em São Miguel do Guaporé “é a principal fonte de contaminação e propagação do vírus neste pequeno município”, já que é ser empregadora local, com cerca de 900 funcionários na época.
Em Dourados, os casos começaram a surgir por volta de maio. A decisão do procurador do Trabalho Jeferson Pereira foi fechar um acordo envolvendo a JBS e autoridades de saúde locais, o que resultou na realização de testes em massa em julho, pagos pelo Estado. Quase um quarto da força de trabalho de 4.300 pessoas testou positivo, desencadeando um dos piores surtos comunitários no Mato Grosso do Sul.
O município de Dourados tem quase 223 mil habitantes, entre os quais 6.058 testaram positivo para Covid-19 e 82 faleceram até 7 de setembro, mostram dados do Ministério da Saúde. Outros frigoríficos, inclusive a BRF, registraram surtos em fábricas na cidade.
Julio Croda, epidemiologista e ex-chefe do departamento federal de imunização e doenças transmissíveis do Ministério da Saúde, afirmou que “toda a pandemia em Dourados se iniciou através de frigoríficos. Isto é um fato epidemiológico”. Por outro lado, a ABPA diz que a indústria sempre agiu para controlar o coronavírus, e nega a avaliação do especialista.
Representados por um sindicato, trabalhadores da JBS em Dourados entraram com uma ação em 14 de julho pedindo que a empresa arque com as despesas de saúde dos funcionários que foram infectados pelo coronavírus. Ainda não há decisão de mérito.
Mantendo seu comportamento de praxe, a JBS defendeu sua posição e afirmou que implementou o protocolo de prevenção com rigor em Dourados, e que teve “um ótimo resultado… no controle da Covid-19 nessa planta”.
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